A Lata de Biscoitos
“E Agora André”
Teria
eu seis anos, um carrinho de madeira e três latas: lindas, redondas, cada qual
com o seu desenho de flores e no meio da tampa um castelo. Na lata branca,
minha mãe guardava bolacha Maria. Na azul, bolacha de água e sal, de que eu não
gostava muito. Na terceira, que era assim entre encarnado vivo e cor-de-rosa,
enchia-a
de biscoitos farelentos e bons que
eu não me cansava de querer comer.
Das
três latas que eram o maior tesouro da minha infância, a que primeiro morreu,
acabadinha de velha foi a branca, a azul foi a seguir, não muito tempo depois,
a encarnada, apesar destes anos todos, tem andado por aí (não posso afirmar se
viva se morta) na memória dos meus dias.
Eu
explico: um dia, ainda as três lata eram vivas, saudáveis e brilhantes,
desapareceu, misteriosamente, a lata encarnada e rosa. Meu pai, morreu
convencido de que teria sido eu que a escondera e naquela aflição de negar a
asneira, me esquecera do lugar. Eu bem explicava. Bem chorava. Ainda para mais,
durante quinze dias, não houve
mais lata nem biscoitos.
Depois,
lá veio uma outra lata - até parece que mais bonita que aquela, cheia de
biscoitos, alguns com cobertura de chocolate e tudo. Meu pai fez-me um
sermão que é feio tirar as coisas sem ordem dos mais-velhos, e é interessante
contar que eu, até hoje, nunca mais toquei num biscoito. Como os adultos têm
sempre explicações para tudo, logo ele inventou que eu ficara de tal maneira
enjoado por ter comido a lata inteira que agora não queria nem vê-los...
A
Lata de biscoitos passara a ser receita para toda a gente com filhos da minha
idade: “ Deixe-os
comer, que eles de tanto comerem acabam por enjoar”. A Lata de biscoitos
passara a ser a explicação científica de meu pai: “ As crianças muitas vezes
não mentem. Acreditam no que a sua imaginação criou. Outras vezes, escondem o
objecto que os levou a fazer alguma asneira e esquecem-no. Desaparece o objecto,
desaparece a culpa. Olhe por exemplo: o meu filho escondeu uma lata de
biscoitos e nunca mais soube aonde. A mente humana, principalmente a infantil,
é um mundo fascinante.” Concluía ele, contente consigo próprio.
A
Lata de biscoitos andou comigo toda a vida: porque não fui eu que a roubei, não
fui eu que a escondi, não fui eu que lhe comi os biscoitos. É bem verdade que
no dia do desaparecimento da Lata, não estava ninguém em casa senão eu. Não
entrou ninguém em casa, pelo menos que eu visse. Minha mãe tinha ido visitar a
minha tia que estava adoentada, ou se calhar nem estava, porque mais tarde vim
a saber que tinha tido um filho, aliás uma filha que é a minha prima Isabelinha.
E, como aprendi depois: gravidez, não é doença. Meu pai estava no seu serviço
da loja, atrás do balcão, aviando os clientes, conferindo os materiais e
passando Facturas que afinal eram só Notas de Remessa, porque quem passa
Facturas é o Senhor Mário de Sousa, um mulato de olhos esbugalhados, aumentados
pelas lentes dos óculos que é o guarda-livros e, apesar da cor
(como se dizia) é uma pessoa de respeito e exemplo.
Meu
pai repetia, sempre que apanhava uma daquelas caixas de palitos de palitar os
dentes, que tinha a Torre dos Clérigos desenhada: “ Olha -
atrás daqui, está a escola onde hás-de estudar. A Raúl Dória. Hás-de ser um guarda livros como o senhor Mário...”
E
eu olhava, fixava bem a tal torre, para ver se ela me deixava ver o que estava
por detrás dela. Como sabeis, os desenhos, bem ou mal feitos, não têm por
detrás.
E
eu que sim senhor, a ver-me já sentado, silencioso, a passar Facturas, a somar
números, a fazer cartas. Também a desenhar num misterioso livro que só se
escreve à noite. O Senhor Mário a chamar o chefe dos serventes: “Prepara o
petromax”. Saía mais cedo. Voltava pouco depois de fecharem as portas. O
Servente a postos. Tirava o casaco (ele nunca tirava o casaco, senão naquela
ocasião) arregaçava as mangas e o petromax subia até ao gancho do teto. Ficava
a balançar: dim, dlão, dim, dlão que parecia um sino, ou um daqueles bocado de
carril de combóio, onde se batia para chamar os contratados.
O
Senhor Mário preparava as canetas de aparo (tinha umas quantas) afiava os lápis
(também muitos) e ia lavar as mãos. Quer dizer as mãos e os braços até aos
cotovelos. Enxugava-se
bem, numa toalha limpa e branca e depois sentava-se. Experimentava a
primeira caneta numa folha de papel e com as páginas do livro resguardadas por
uma folha de mata-borrão começava a desenhar letras.
Cada
palavra feita (vagarosa e deleitosamente feita) era seca com um mata-borrão
(cuidadosamente e sem pressas). “ Está a escriturar os livros”, dizia quem
passava, procurando não fazer barulho. Sabia-se: uma rasura, um borrão,
uma pequena emenda e as Finanças recusaria os livros. Uma tragédia! ter de
copiar o livro desde a primeira folha.
Pois
estava eu a pensar na minha escola “Roldória” e no meu ofício de guarda-livros
e já me via, com aqueles óculos grandes e a minha cor de mulato que eu julgava
que era a cor dos guarda-livros, quando aconteceu o roubo da Lata. O Misterioso
Roubo da Lata de Biscoitos.
Se eu pudesse, fazia
queixa ao Senhor Tenente da Polícia, mas eu mal o conhecia. Raramente ia à
loja, porque quando precisava, mandava um bilhete por um sipaio e era logo
aviado.
Com
o tempo, comecei a pensar que a Lata de biscoitos teria sido roubada por um
anjo. Porque se ninguém entrou pelas portas e as janelas têm todas rede para
não deixar passar nem os mosquitos, só podia ser um ladrão vindo do céu que
fura em todo o lado. Vocês sabem que os anjos são crianças pobres que nem têm
uma roupa de vestir. Andam nus, coitados. Então, quem não tem dinheiro para
comprar um calção, não tem dinheiro para comprar uma Lata de biscoitos. Foi aí
que ele espreitou lá de cima e viu que eu estava a comer o meu biscoitinho
e quando fechei a lata com medo de
comer tanto e tanto que a minha mãe desse conta, zás! veio num voo picado,
igual ao do Fragoso no avião e roubou a lata. Nem aterrou nem nada. Foi só
agarrar, comer e comer e deitar a lata fora, lá para longe no mar, não fosse
Nossa Senhora dar conta da ladroagem.
Quer
dizer: depois de ter inventado esta estória andei sossegado uns tempos. Anos,
talvez. De biscoitos nunca mais gostei. O meu pai sorria: “Aprendeste por uma
vez”, dizia ele contente como se tivesse ganho a sorte grande, que na altura,
eu não sabia o que era. Já nem sei onde se compravam as cautelas. Sei que os
vigésimos premiados (com terminações, naturalmente) eram comprados como moeda
válida na metrópole. Assim se conseguia mandar algum dinheiro aos avós.
Foi
na altura da primeira comunhão (eu fui tarde para a catequese) que a Lata
regressou. Na véspera fomo-nos confessar ao Padre Sherring, um homem de longas
barbas. Pecado daqui, pecado d’além, lá ganhei coragem para confessar o grande
pecado que tinha: “Tenho muita raiva de um anjo ladrão e eu não quero perdoar,
e porque assim e porque assado, que a Nossa Senhora já lhe tinha posto de
castigo, mas mesmo assim...” O Padre, lá atrás da grade, tossia numa grande
agitação, como se estivesse a rir, mas não estava, porque isto era um assunto
sério.
-
Conta lá essa história.
E
eu contei. “Tu viste o anjo roubar?” Não senhor. Mas só podia. Ninguém mais
entrou em casa.
E
o padre, se calhar, tentando desculpar o anjo que era lá da igreja dele: “
Podia ser um gato. Os gatos entraram pela janela, comeram-te os
biscoitos todos e tu julgas que foi um anjo.” E eu vitorioso e feliz: “ E a
lata? Como é que ele levava a lata?”
O
padre mudou de estratégia: “ Faz de conta então que foi o anjo. Se Nosso Senhor
te perdoa os pecados, como é que tu não perdoas ao anjo?” Mas pecados não são
biscoitos, senhor padre. Os pecados doem e os biscoitos são doces. E ademais:
não é pecado a gente perdoar aos anjos do diabo? Este, como era ladrão, devia
ser um anjo de Lucifer. Eu disse mesmo Lucifer que era uma palavra mais bonita
que eu tinha aprendido... Aí o padre arrancou para a sacristia agarrado à barriga enquanto eu esperava
por ele. Lá dentro, na sacristia,
o coitado tinha uns arrancos que às vezes até parece que estava a rir... mas
não estava -
devia ter tomado um purgante que é uma coisa ruim que eu tomo sempre para me
limpar as tripas e eu não ter febres depois. Vocês já tomaram purgante de óleo
de rícino? É horrível! Mas esqueçamo-nos deste assunto que é um caso muito sério.
Quando
o padre voltou, com os olhos cheios de lágrimas (devia ter estado a chorar pelo
anjo maldito) disse: “ Pois vai lá e vê se podes perdoar ao anjo...” Está bem,
está bem, mas ficou-me
aquela do gato.
Um
gato seria capaz de levar a lata na boca como eu vira que uma gata fizera com
os filhotes? E eu aos gritos: “Damião ( Damião era o meu criado) a gata está a
comer os gatinhos pequeninos. E o Damião
ria-se:
“É assim que ela leva os filhos no colo dela.” Pasmei e agora pasmado estou que
além de levar os filhos, os gatos pudessem também levar latas vazias na boca.
Andei
com a gata e a lata, tempos e tempos, à espera de poder perdoar ao anjo. Só
muito mais tarde vi que era impossível a gata ser a ladrona. Sim Senhor: ela
pode pegar com os dentes na lata vazia, mas a tampa? Teria de deixar a tampa e
nem a tampa sobrou. Já menos desgastado com o anjo disse-lhe: “ Está bem, perdoo-te,
mas não quero ser teu amigo”. Calculo que ele deva ter chorado muito, porque no
triste. Só não chorei porque o meu pai sempre diz que os homens não choram.
E
agora: vocês acham que os anjos também têm pai? É que no outro dia perguntei ao
Senhor Padre se lá no céu haveria anjos pretos. Ele falou assim: “Por quê?” -
Porque queria saber se os pretos e os brancos eram filhos do mesmo pai... Não
sei porque é que ele se riu. “Todos são filhos de Deus”. -E
qual é a cor de Deus? “Deus não tem cor.” Pensei comigo: se não tem cor é
albino... se é albino, coitado, anda sempre escondidinho. Por isso é que Deus
não aparece, nem sai da sua sanzala do céu... E Deus mora na sanzala? Se é albino, mora. Se é branco tem
casa. Se é mulato é conforme, se mora com o pai, se mora com a mãe...
Estou
agora com sessenta e seis anos. Naturalmente velho. Naturalmente com filhos e
netos e, embora o tempo agora corra mais depressa - entra-se
num ano novo e logo a seguir está-se a beber pelo ano velho - embora o tempo voe, dizia
eu, tenho mais tempo para pensar. Resolvi então que seria tempo de rever o
problema da lata. Porquê? E porque não?
Sabido
que não fui eu. Posto de lado o anjo e o gato que não terão sido, vejamos o
caso daquele dia:
É
verdade sim, que mal minha mãe saiu de casa (comigo só ficou o Damião que se
aproveitava destas escapadelas para ir brincar com a lavadeira) subi a uma
cadeira, da cadeira para o aparador e consegui tirar a lata. Abri-a. Os
passarinhos cantavam nos ramos da goiabeira e como já era costume esfarelei um
biscoito na tampa da lata. Porquê na tampa? Porque é porcaria comer em cima da
terra. Se faz mal à gente, como dizia a minha mãe: “Meninos, não brinquem com a
terra que ficam doentes”, pior para os passarinhos que são mais pequenos.
Depois, porque queria ouvir o som das bicadas na lata enquanto comiam. Eu tinha
aprendido a fazer isso sem os espantar. Ou melhor: o Damião é que me ensinara.
Estive
ali entretido. Os passarinhos foram embora de papo cheio e eu juro que pus a
lata no mesmo sítio: subi à cadeira. Subi ao aparador. E pus a lata direitinha,
com o desenho das flores virado para cá, porque a minha mãe às vezes põe a lata
virada assim ou assim para saber se alguém lhe mexeu. Ninguém entrou. Ninguém
saiu. E a lata desapareceu. Um mistério que há sessenta anos, me anda aqui a
preocupar a vida.
Vocês
lembram quando eu perguntei ao Padre se havia anjos pretos no céu? É que eu
pensava assim: se os anjos brancos não roubam, porque são brancos, só pode ter
sido um anjo preto, se os houvesse. Porque só os pretos é que roubam. Isto,
ouvia eu dizer todos os dias... Às vezes, meu pai desabafava, quando havia um
branco muito mau: “É pior que preto.” E eu ficava a saber que os pretos eram
sempre maus, embora houvesse brancos ainda piores que eles.
Mas
veio-me
uma ideia à cabeça: poderia ter sido a minha mãe. Ora pensem comigo: eu era
guloso como qualquer criança. Ou talvez não: mais guloso que qualquer criança.
E vai daí, minha mãe entra, olha para a lata (eu não a terei colocado na
posição certa) investiga o chão (lá terá visto uma ou outra migalha) e pensou
consigo: “Espera aí que eu já te tiro o vício...” apanha-me distraído, esconde a
lata e tem pretexto para ralhar comigo. Como sabe que eu gosto tanto dos biscoitos
como da lata, vai comprar outra - esta verde - e eu, ou por orgulho ou porquê, recuso-me a
comer. Como diz meu pai, fiquei enjoado.
Mas
pensemos: se tivesse sido a minha mãe ela contaria ao meu pai e este acabaria
com as suas teorias do enjoo e da mentira. Precisamente por isso é que o meu
pai não entra aqui no rol dos suspeitos. Não faz sentido que um homem fale com
tanta convicção de uma verdade e depois se chegue à conclusão que ele inventou
essa mesma verdade.
Continuando
a investigar as minhas lembranças. Teria sido o Damião a tirar a lata, tanto
mais que tenho de admitir (embora não queira) que ele era preto, e preto é
sempre ladrão? Mais tarde vim a saber de duas coisas: as mulheres grávidas têm
desejos estranhos -
é a primeira; o Damião fez um filho à lavadeira. Isso sei eu, porque a minha
mãe queria descontar dinheiro ao Damião para dar à lavadeira para as despesas
do filho e ele refilava: “ Não senhora! Menino (era o filho dele) não tem
despesa (ele dizia dispensa): mama nas mamas da mãe, não precisa o meu
dinheiro.” Minha mãe queixou-se a
meu pai desta lógica e ele limitou-se a dar uma gargalhada e a encolher os ombros: “ Sabes
como eles são. Não pensam como gente.” Meu pai não disse como a gente. Disse como gente.
Como será a gente que não pensa como gente?
Ora,
fiquei eu a saber que mesmo não pensando eles como gente, a rapariga deve ter
tido desejos de biscoitos que me via comer. O Damião foi buscar a lata. Lá
terão comido um e outro e, de repente - a mãe chegou. Assim sem
mais nem menos. Uma aflição: aonde guardar a lata para não ser ladrão? Escondeu-se a
lata no monte da roupa suja e da roupa suja saltou para a quinda que ia e vinha
com a lavadeira todos os dias da senzala para casa e da casa para a senzala. Lá
ficou a lata sem poder voltar, porque mal a minha mãe chegou, deu conta da sua
falta. Fazê-la
aparecer seria confessar o crime...
Pois
então: se não fui eu, não foi o anjo, se não foi o gato, se não foi o meu pai,
se não foi a minha mãe, quem sobra que terá sido? O Damião. Da lavadeira não se
fala que não era de casa. Digamos: não era da família.
O
Damião podia mexer em tudo que ninguém lhe ralhava. Ou melhor: a minha mãe
passava o tempo a ralhar com ele - ou porque estava a brincar comigo, ou porque não estava
a brincar comigo. Ele sorria: “Sim senhor, patroa...” e ficava a escutar os
desabafos da minha mãe, como quem escuta cânticos do céu: “ Vocês são sempre os
mesmos.” E ele com a mesma litania: “Sim senhor, patroa...”
Nunca
percebi até hoje, se ele sorria humilde, se ria por dentro das palavras de
minha mãe. Os pretos são muito gozões, vocês sabem, não é? Dão uma de fingidos
que não sabem, que não percebem, e estão a gozar...
Bem:
depois de resolvido o Mistério da Lata dos Biscoitos, não vou inventar outro à
distância de sessenta anos: O do Sorriso do Damião.