Indeferimento
O homem agitava–se desorientado. Cheio de uma razão que
lhe enchia os olhos e atrapalhava
as palavras.
– Não é um miúdo qualquer de ministro que me chateia.
Eu mesmo, com ele não falo mais.Vou logo direitamente no pai dele. Pai não é
governo de ministro, mas ainda é pai. Lhe conheço há mais de sessenta anos.
Inda mesmo quando a gente era candengue e andava aí nas ruas, é que a gente se
conhece.
Fazendo
uma pausa, com uma recordação a bailar–lhe nos olhos, qualquer coisa que devia
ser dita e era importante:
– Porque, mesmo do pai dele, era o seu mais–velho.
Andava lá no nosso grupo, mas só como caxico.:vai buscar isto, vai comprar
aquilo. Se comia com a gente, comia no fim de todos e eram só as sobras. Mesmo
o filho dele, o ministro...
E
repisava, como gestos e pausas cada vez mais solenes.
– Sim, o ministro. Agora até parece uma pessoa, mas
nos tempos andava como? Era cheio de ranhos que ainda mesmo hoje os perfumes
desconseguem de lhe tirar os cheiros catinguentos das ranhetas deles. Era a ele
que a gente mandava: “Vai an loja do Sô Manuel e traz isto”. Se não tinhas
dinheiro em casa, quem é que falava? Sim, quem é que falava?...
E
fazia uma pausa, esperando a resposta qe ninguém sabia, mas todos adivinhavam.
– Que é que falava: “ Miúdo ( miúdo era o ministro,
está a ver?) diz para mandar um garrafão de vinho (e era um garrafão de
capacete, não era vinho de preto qualquer) que eu amnhão passo por lá e
pago.Quem é que fiava an loja? (perguntava e respondia:) EU. Quem tinha o
respeito? ( e batia, orgulhoso no peito:)EU mesmo, o próprio, sozinho.Quem ia
fazer os reacados, as caxicagens catinguentas?
E
respondia ele, assim como quem está a falar num comício:
– O ministro. Esse miúdo burro e com feridas do quê an
cabeça. An escola custou aprender. Só com porrada é que lhe abriram a cabeça.
Agora é doutor, como é isso então?
E
pausa. E olhos injectados e furibundos. E a nossa curiosidade desperta,
satisfeita, contente, para ouvir falar mal de gente grande.
– E então, esse gajo, esse garoto que lhe conheci aqui
mesmo nos musseques ( eu mesmo,nesse tempo já era um senhor e vivia an cidade.
Não era um preto qualquer assim. Morava no sítio dos brancos. Meu vizinho era
branco...
E
perguntava, como se todos soubessem a resposta:
– D. Maria Furtado d’Almeida era quê? (e respondia:) Era branca. Dona Fracisquinha da Cunha Pousada, era
quê? ( e voltava a responder:) cabrita como branca e professora...
Deu
conta que se tinha desviado da conversa e retomou o rumo, não sem antes limpar
o suor que lhe escorria pela testa com um lenço impecavelmente branco.
– ... esse ministro que lhe conheci miúdo... então
pensei: tenho as minhas dificuldades, o rapaz pode–me ajudar e mandei–lhe um
requerimento e tal e quê que sou eu, fulano, que se lemra lhe conheci com o teu
pai e a tua mãe, no tempo ainda da avó Miquelina, sua tia da parte de mãe, as
duas infelizmente já an idade de falecidas. Estou nas minhas dificuldades, pelo
que agradeço a V.EXª me mandes distribuir um IACE para eu pôr an candonga e
governar a minha vida. Até aqui, tudo bem.
Assoou–se,
atroando a rua com o sopro das suas narinas. Dobrou cautelosamente o lenço para
continuar:
– ... pois até aqui tudo bem. Porque vizinho ( e a
gente era quase vizinho – ele no musseque, eu na cidade) vizinho é mas família
que irmão. Vizinho mora com as nossa desgraças e o nosso irmõ está longe. Quem
lhe tirou o pai da cadeia da administração – foi o irmão tio dele, ou fui eu?
Se eu preciso agora quem vai–me pê curativo nas feridas das minhas dificuldades
é esse miúdo mesmo. E sabem o que ele fez?
E
espalmava a mão no peito. Batia com força a mão no peito, os olhos quse a
lagrimar, vermelhos e cheio de raiva.
– ...me mandou chamar: “ O senhor ministro tal e quê,
deseja falr consigo Qinta feira às onze horas. Me vesti de fato e fui. Recebido
com o Ministro estavam mais dois camaradas cheio de gravatas e camisa daquelas
antigas de botão de punho e tudo. O Ministro calado a olhar para mim.
– “Foi o Senhor que fez este requerimento?” Perguntou
um desses tal. Eu respondi, com a minha educação: “Com a graça de Deus, fui eu
mesmo.Sei ler. Sei escrever. Aprendi an Missão do Késsua e no José Maria
Relvas.” Vai o outro e fala: “ O Senhor tem consciência do que pediu a Sua
Excelência?” E eua agora já a responder: “ a Sua Excelência eu não pedi nada.
Pedi sim, está aí muito bem escrito, a Vossa Excelência”...
E
o outro, o tal camarada, parvo e admirado:
–
“ A mim?” e eu an resposta: “Não sei se o camarada é também Vossa Excelência
que me pode ajudar. Aqui an minha
idade toda a ajuda nunca chega. Se Vossa Excelência é excelência como o
excelentíssimo Senhor Ministro, muito obrigado. Pode–me dar a chave do IACE que
eu trouxe já o motorista e o trânsito anda muito lixado nestas hora do meio
dia.”
Estávamos
assim muito bem nesta conversa ( muito educados, porque tu mesmo se tratas o
homem com tu, com gente estranha é sempre Excelentísmo. Porque se você não
respeita a sua família, quem é quevai respeitar?... então o sacana do ministro
que estava calado e muito calado, falou: “ Vamos acabar com isto: o velho não
está a perceber nada.” E depois virou–se para mim: “Chamei–o cá, com a consideração de lhe conhecer, a dizer
que o seu requerimento foi indeferido. Se está com dificuldades posso–lhe
adiantar um dinheirito...” E eu que não estva mesmo a perceber, sem pegar no
dinheiro que ele me estava a dar... “Indeferido é como é?” E o outro, o
camarada armado em excelência: “Indeferido é não.” E eu, virado para o
ministro: “ E como é que você está a dizer não, a mim que sou teu mais–velho, e
está dizer sim a todo o candongueiro ladrão que anda aí nos carros a roubar o
povo?” E ele, mais manso, a falar com o seu jeito de ministro: “ Tome o
dinheiro ti Alberto. Não é muito mas sempre faz jeito...”
Parei.
O dinheiro estava–me a cumprimentar – era um motinho bonito, mas eu, pessoa de
respeito que toda a gente me conhece, lhe falei grosso:
– Como é que você, filho de teu pai bêbado, que lhe
tirei duas vezes da cadeia do colono, me está a dizer que é não, quando essa
que lhe chamam secretária, você deu um carro que não é IACE de trabalho, mas
marca de fazer serviço do passeio?
Vocês
acreditam o que é que o gajo fez? Chamou os polícias da segurança e me mandou
pôr fora. Ainda ouvi ele dizer, “não lhe façam mal. Não batam no velho.” Sacana
de merda que lhe conheci assim e fez o gesto (braço estendido na horizontal e
mão, com os cinco dedos unidos virados para cima) mostrava um desentendimento
completo, como se o menino tivesse crescido de repente e, filho de quem era,
lhe estivesse a dizer que o pai era outro.
Me
agarraram, mas mesmo assim lhe gritei:
– Limpa o rabo nesse teu dinheiro sujo. Eu não sou
pobre de pedir esmola e tu, não esquece, te queixo no Presidente, te queixo no
teu pai, conheço os meus direitos e sei: com esta idade que eu tenho eu não
posso ser indeferido. Nem ministro me pode indeferir.
Dario de Melo