Milagre de Natal
O Menino-Jesus é mau. Vou-lhe
queixar no Jesus-Grande
que ele me roubou o meu passarinho azul.
O Menino-Jesus não rouba?
Rouba, sim senhor. Rouba de
inveja. Quem me disse foi o meu pai que ainda hoje de manhã, quando eu estava a
chorar porque o meu peito-celeste tinha morrido. Ele falou assim:
-
Deixa lá, filho. Ele agora está no céu a cantar para o Menino-Jesus.
O meu pai sabe tudo do céu.
Quando a minha mãe morreu, ele falou assim a chorar quando lhe perguntei:
- E a
mãe, papá?
- A
mãe foi para o céu. Deus levou-a.
Então: primeiro esse Deus levou a
minha mãe; agora o Menino-Jesus rouba o meu passarinho... lá no céu é casa de
bandidos, estás a ver? Quando eu for grande, pego numa AKÁ, mato essa
bandidagem toda e trago a minha mãe e o meu peito-celeste. No céu só vai
ficar o Jesus-Grande
e os anjos que lhe ajudam na fábrica dos passarinhos. Meu pai é que sabe e ele
é que me disse: lá tem uma fábrica de pássaros que fica em cima das nuvens. Lá
é que fazem os peitos-celestes. Os pássaros feios, não. Esses nascem mesmo dos
ovos nos ninhos das árvores. Jesus-Grande é que pinta as penas dos anjos com a cor do céu - umas
azul de dia, outras escuras, de azul da noite - mistura tudo com olhinhos
e bicos e patinhas pequeninas e põe nas máquinas a trabalhar. Elas trabalham,
faíscam os trovões e começam a cair peitos-celestes na caixa. Quando
as caixas estão cheias, vêm dois anjos, chegam ao fim da nuvem e despejam os
passarinhos cá para baixo.
Ali vêm eles, a dormir. Com o
frio do vento acordam. Com o susto abrem os bicos e começam a cantar. Depois
estendem as asas e voam.
O meu peito-celeste
quando aterrou vinha numa bisga tal que torceu uma pata. Foi aí que lhe apanhei
e fui levar ao meu pai para o consertar. O meu pai consertou a pata do Zezinho
(foi assim que eu lhe baptizei com água mesmo da igreja. Lhe tirei lá com uma
caneca). Meu pai pôs dois palitos e juntou tudo com fita-cola e, dois dias depois,
o meu peito-celeste
já podia andar.
Ele ficou com a pata um bocado
torta. Não importa: é um pássaro deficiente de guerra, como esses militares e
quê, que andam de muletas. Deficiente sim, mas tinha boa cabeça.
Aprendia tudo: saltava para o
ombro, capengava, ia dar uma volta no quintal, mas voltava sempre a casa.
Ficava no quarto à minha espera. Aprendeu a andar na minha cabeça, a cantar lá
em cima, a catar os meus cabelos. Pena que eu não tinha piolhos como os outros
meninos. Ainda perguntei ao pai:
- Pai,
como é que se arranjam piolhos?
-
Porquê?
E eu expliquei:
- Se
eu tivesse piolhos, o meu passarinho podia comer na minha cabeça quando tivesse
fome.
Então o pai explicou que os
peitos-celestes
não comem piolhos, o que é muito mal feito. Vou rezar ao meu Anjo da Guarda
para dizer ao Jesus-Grande,
que tem de fazer pássaros mais bem feitos. Vocês acham que os peitos-celestes
têm anjo da guarda. Já pensei até: e se o meu anjo da Guarda fosse mesmo o meu
passarinho que veio à terra disfarçado?
Foi aí que eu rezei mais alto e o
Menino-Jesus-Bandido
ouviu e veio cá baixo e se invejou com o meu passarinho e o levou com ele. Se
lhe pudesse encontrar dava-lhe uma cabeçada. Por isso fui perguntar ao meu pai:
- Pai,
como é que a gente faz para morrer?
E o meu pai respondeu como
sempre, a perguntar:
-
Porquê?
-
Precisava de ir ao Céu dar umas porradas no Menino-Jesus.
E o meu pai explicou:
-
Ninguém faz nada para morrer. Só Deus é que sabe quando a gente vai morrer.
Eu mesmo nem gosto de Deus que me
levou a minha mãe. Não quero falar com ele. Ele mesmo quando vier me dizer: “
Vou-te
levar”, eu lhe respondo: Experimenta só. Te lixo, meu...
- Pai:
o Jesus-Grande
faz milagres.
-
Porquê?
- Vou-lhe
pedir para ele ir roubar o meu peito-celeste que está em casa do Menino-Jesus-Bandido.
- O
Jesus-Grande
não rouba.
- Mas
pode ir queixar na Nossa Senhora que o pássaro não é dele.
- Quem
sabe se pode. Escreve-lhe uma carta.
-
Dessas do Pai Natal?
-
Dessas mesmo.
Eu ainda não sei escrever de
escola, mas posso fazer o desenho do meu passarinho e depois à noite falo com
Jesus-Grande
que anda disfarçado de Pai Natal. Então, ele ouve tudo muito bem. Pega no meu
desenho com a fotografia do peito-celeste e vai a casa de Nossa Senhora: TUM,TUM,TUM. - “
Sim. Quem é?” Sou eu o Jesus- -Grande. “Ora viva! A saudínha como vai?” Conhece este
passarinho? “ Conheço, sim senhor. É o peito-celeste do meu filho.” Ai
não é não. Este peito-celeste é de um menino da terra. “Ai o malandro deste
rapaz que só me dá arrelias. Ó Jesus! Ó Menino Jesus, vem cá.” É o vens! O
Menino bazou para não levar uma sova e o Jesus-Grande, trouxe-me no
Natal o meu peito-celeste
dentro de uma gaiola. Meu pai avisou:
- É
preciso ter cuidado. Tens de lhe ensinar tudo, tudo. Ele lá no Céu esqueceu o
que lhe ensinaste.
Pudera! Com um miúdo daqueles que
não sabe fazer nada. E ensinei, ensinei, ensinei. Um dia abri a gaiola e a
janela e disse-lhe:
-
Escolhe: se queres vai embora.
Ele ficou todo coitadinho: saltou
para o fio de estender a roupa, voou à volta da mangueira. Pousou. Andou ali a
xeretear de ramo em ramo e depois mergulhou um voo picado e m’aterrou na
cabeça: “TUM,TUM,TUM” - Quem é. “Sou eu o Zezinho” - Queres o quê então?
“Quero ir brincar contigo”.
E fomos. Pus o Zezinho no ombro
para invejar o Menino-Jesus-Bandido. Toda a gente que olhava para o meu peito-celeste:
tão esperto, tão lindinho, tão voador. Dava uma volta e voltava. Lá no Céu, o
Menino-Jesus-Bandido
chorava. Bem feito! Até lhe ouvi a mãe dele a ralhar:
- Ou
te calas já, ou levas uma surra que nem queiras saber...
Nossa Senhora: dá-lhe
mesmo. Esse miúdo anda muito abusado com as coisas dos outros. Dá-lhe,
mesmo. Com o chinelo... Bem feito! O Menino-Jesus chorava. A Mãe dele,
batia, e o meu passarinho voava.