O Enterro

              Era um camarada branco, com jeep de luxo, dentro do labirinto de um bairro periférico. Viu um ajuntamento e seria ali. Entrou. A casa era modesta, mas limpa, como aliás é próprio das casas no planalto, com o terreiro da frente e o quintal de trás diariamente varridos.              Começou por cumprimentar os familiares, ou que lhe pareciam familiares. Dizia qualquer coisa que ninguém entendia - entre o boa tarde e os pêsames. Sentiu a admiração nos olhos de todos. Ali estava ele, apesar de branco, a dar um exemplo de sã camaradagem para com o falecido, que era, aliás, uma pessoa exemplar. Ali estava ele, a deixar no coração daquela gente - pelo menos nos familiares que eram possivelmente Kwachas - uma semente de dúvida. O homem do sul é sensível a estas pequenas atenções.
    Procuraram uma cadeira para que se sentasse. Ficou no trono, a remoer tempo, os outros em bancos gentios ou na esteira.
    Sentia as perguntas nos olhos baixos dos parentes: “Esse branco, conheceu o nosso velho d’aonde? O nosso falecido era criado desse camarada? O nosso falecido nunca foi criado de nada. Só chegou aqui na cidade faz três anos. Se conheceram no Chinguar? Aí sim, se conheceram. Ou na Missão do Dôndi. Aí sim: os brancos que estavam lá, não eram iguais aos brancos colonos que estavam cá. Então, esse camarada, pode ser filho do missionário... Deve de ser.” Sossegaram os pensamentos, mas não lhe sossegavam as costas que a cadeira era especialmente incómoda, até que um jovem, digamos, mais urbanizado se aproximou dele para perguntar:
    - O camarada, vai mesmo acompanhar até no cemitério?
    Claro que sim, que vou. Para isso é que estou aqui: acompanhar o nosso camarada no seu                 passamento físico.
    - Muito obrigado. O Camarada pode dar boleia? Tem umas velhas que não podem mais    andar. O camarada lhes dava boleia, depois lhes trazia em casa.
    Pois claro. O carro está ali para isso. Chegando a hora, a gente vai.
    E foram. As velhas, eram uma cinco, arrumadas sabe-se lá como. Tudo atrás. Nenhuma se sentou ao lado do condutor. Ele a dominar a impaciência de um carro em primeira, a passo de enterro: pára aqui, para acolá, canta e reza - que apesar dos tempos novos, os mais velhos não se desapegam das crenças antigas. Padre, pastor ou catequista, é que não tinha.
    Normalmente substituíam-se as orações finais e aqueles benzimentos que são próprios que o  padre faça, pelo elogio do defunto. Hoje, tinha a certeza, em homenagem à sua presença, o palavrório seria em português. Poucos entenderiam o que o orador dissesse, mas educação é assim.
    Foi acompanhando a carreta, um pouco desnorteado porque não via ninguém do Partido. “Esses camaradas são lixados. Se em vez deste pobre diabo que era um militante de fibra, fosse um outro qualquer, até o Camarada Comissário estaria aqui. Isto não se faz: um velório sem ninguém do Partido. Aguardemos pela próxima reunião do Comité Provincial: vou desancá-los.”
    A velha que ia ao lado tropeçou (ou numa pedra, ou na idade que é um pedregulho bem maior) ele amparou-a. De braço dado, a velha tinha um andar mais animado. Agarrava-se a ele. Como era um camarada bastante alto, todo se entortava para a direita, porque a velha que já era pequena por natureza, ainda mais pequena se tornara com o tempo. Tentou tirar um pouco do braço, para se endireitar, mas a velha sentia-se bem - é o deixas! Ia ali firme, como naufrago agarrado a uma bóia de salvação.
    Ele sentia o ridículo da sua posição entortada: “Olha se agora aparecessem os camaradas do Partido (embora tarde, esses gajos chegam sempre) e o vissem assim. Que gozo, meu Deus! Aliás, que gozo, meu Lenine! Ora porra para os meus pensamentos. Mas o que há-de pensar um tipo que sai de uma cadeira que lhe dá mais cabo ainda?
    Felizmente chegaram à beira da cova. A velha desagarrou e começou a chorar. Foi sinal dado          para que todos chorassem. Ele não, que naturalmente não tinha grandes habilidades para o choro. Abriram o caixão: esticado, firme e sereno o morto ali estava. “Porra! (era a única asneira que se permitia dizer mesmo em pensamento) que me enganei no enterro. Agora faço como? Aguenta, meu caro. Aguenta até ao fim.”
    Um homem alteou-se num montículo de terra tirada da cova. Ficou como um padre num púlpito de igreja e começou a arengar virado para ele: “Camarada excelentíssimo: a nossa família agradece muito a Sua Excelência nosso camarada, de vir aqui levar o nosso mais velho à última morada. Sua Excelência, nosso camarada, grande engenheiro da nossa terra, militante do M.P.L.A, Partido do Trabalho, tinha as suas coisas para fazer, mas chegou mesmo aqui para chorar com as nossas lágrimas...” O tipo é poeta ainda por cima.
    E ele a sentir-se mal porque aquilo não era um elogio fúnebre, era um elogio ao vivo que ali estava e era ele. “... e pedimos a Sua Excelência nosso camarada, umas palavrinhas para o nosso velho...” Afinal! Quem ia fazer mesmo o elogio fúnebre era ele. Subiu ao púlpito. Os olhos todos pregados nele. As velhas e a generalidade das mulheres esqueceram-se num repente de chorar. Atentas. E ele firme: “Estamos todos consternados com o passamento físico do nosso camarada. Homem de bom coração. Homem de trabalho...” generalidades e palavras caras que ninguém entenderia a terminar com “...a sua alma que descanse em paz! E todos, marxisto-leninisticamente a responder em coro: “Amem!”. O que vale, é que não estava ali nenhum camarada do Partido.
    Fez, mais despachado, o retorno ao bairro, quase retirou as velhas ao colo - as velhas tinham já com ele uma certa confiança familiar, havia qualquer coisa de íntimo que os ligava, uma certa cumplicidade. Regressou à cidade e aprendeu duas coisas:
    Primeira que e enterro do defunto verdadeiro fora transferido para a terra da sua naturalidade:a Ekunha. Segundo que havia desconfiança de ter havido uma reunião de Kwachas no cemitério, com a presença de um estrangeiro que ali estivera, propositadamente para deixar instruções.
    O pior de todos os problemas é que não se sabia para onde o estrangeiro fugira, porque nenhum dos Postos de Controlo das várias entradas e saídas da cidade, se deram conta de um carro assim que começou por ser jeep e passou a carro de guerra que ninguém sabia muito bem como seria.
    - O Camarada engenheiro, não deu conta de um carro estranho, de um movimento qualquer, quando esteve no outro dia no cemitério, naquele seu enterro enganado?
Não. Por acaso até não. Não dera conta.