Ferido de
Guerra
Na cidade, no
tempo de uma das outras guerras, levantava-se de quando em vez a enorme
confusão de um ataque. Não é preciso que eu diga que em matéria de guerras
houve sempre "outras" guerras. Antigamente, ainda a gente as contava
e tínhamos: a 1ª Guerra de Libertação, a 2ª Guerra de Libertação e, a partir
daí, talvez porque tivéssemos medo de contar: a Terceira, e depois desta a
Quarta e a Quinta, passámos a não lhes chamar nada. Por isto, este caso
aconteceu numa das outras guerras.
Temos então,
que caiu de madrugada, sobre a cidade, um tremendo de um ataque. Claro que era
habitual, mas este saído quase do lado do quartel dos Cubanos que entravam
calmamente em prevenção e só disparavam se fossem directamente atacados.
O inimigo que
não era burro, andava diante dos seus olhos a bailar de um lado para o outro e
as nossas tropas, com medo de molestar "nuestro hermanos" faziam fogo
com jeito. Vocês já viram uma guerra, onde se faz fogo com jeito, com
delicadeza, diríamos: com educação?
Pois era esta
a guerra.
No Largo
Comandante Kussi, quando rebentava confusão, os velhos - levantavam-se,
vestiam-se rápido (podia ser preciso estar preparado para fugir) e cada qual
reagia da sua maneira.
Ela, de
joelhos, no meio do quarto, rezava o pouco que ainda sabia. Ele (que era de uma
educação irrepreensível) abria a janela e vociferava uma ladainha de asneiras:
- Filhos da Puta.
Assim mesmo
com letra grande e soletrada. E a mulher, de joelhos, a afugentar os tiros como
nos tempos idos, a avó afugentava as trovoadas:
- "Santa Bárbara, Bendita que no céu está
escrita, com raminhos de água benta, vê se nos livra desta tormenta. Já os
galos cantam, já os anjos se alevantam, já Nosso Senhor está na Cruz, para
sempre amem Jesus."
E ele, muito
direito, como que em sentido, por detrás da janela aberta:
- Ó mulher, deixa-me de
rezar pelos galos. Não lhes fales à mão.
O marido era
ateu, mas tinha lá as suas superstições e garganta para a bravar sempre mais
alto:
- Filhos da
Puta.
E a mulher,
cabeça quase a bater no chão (às vezes é preciso bater com a cabeça, para nos
lembrarmos de um nome qualquer, agora esquecido: nome de gente, nome de cidade
ou, neste caso, palavras da oração que o medo fazia esquecer):
- "Se eu dormir, embalai-me; se eu morrer
acompanhai-me com as onze mil virgens e a Santíssima Trindade, meu corpo não
seja triste, minha alma perdida. Jesus Cristo morreu por ela e o filho da
Virgem Maria que nos guarde por esta noite e amanhã por todo o dia. Padre Nosso e Avé Maria ".
E mais um
rebentamento aqui, e mais três ou quatro lá do outro lado e o triturar contínuo
das metralhadoras e os tiros bem contados da Aká: tá, tá, tá, são três tiros;
tá-ta, tá-tá, tá, cinco tiros bem medidos para não esbanjar o carregador e ele
aos berros de desabafo:
- Só faltava que caísse uma
aqui no largo.
Dizia sempre
isto, como que para esconjurar o perigo. Assim do tipo: se eu falo, não
acontece. E gritava:
- Filhos da
Puta.
E a mulher,
cabeça perdida, à procura das orações certas. A última que rezara não era
própria para a ocasião. Deus lhe perdoe, mas era a oração para antes de deitar,
tal como esta outra que lhe vinha agora à ideia:
" Nesta cama me deitei, na sepultura
dos vivos; deitam-se vivos e amanhecem falecidos; Se eu algum destes for, entrego a minha alma
a Nosso Senhor. Se a morte me vier buscar e não lhe puder falar, falai-lhe a
Virgem Maria. Padre Nosso e Avé Maria".
Devia haver
orações próprias para estas trovoadas de guerra, para estes medos e ansiedades.
E os cubanos estão a fazer quê, que nunca mais se decidem a entrar?
- Filhos da Puta
-"PadreNosso Pequenino quando Deus era menino: Jesus Cristo, meu
padrinho, dai-me a vossa mão direita para fazer uma cruz bem feita...
E aqui faltou-lhe
a memória. Saltou por cima e continuou com pressa, não fosse Nosso Senhor dar
conta da sua falha.
-... nunca Deus comigo se encontre, nem de noite, nem à hora do
meio dia. Já os galos cantam, já
os anjos se levantam, já o Nosso Senhor desce da Cruz, para sempre, amem,
Jesus.
E o marido
irritado, com a repetição daquela da lenga-lenga:
- Ó mulher, já disse: deixa de
rezar aos galos. Não me faltava mais nada.
E rebentava na
sua:
- Filhos da
Puta
E ela, sem o ouvir, só com aquela na cabeça: isto já
está a durar muito. Mesmo sem olhar para o relógio conseguia, sem engano,
calcular o tempo: meia hora. Como se o medo lhe tivesse feito engolir um
relógio.
- "Padre
Nosso Maior: Sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo, quando os Anjos vão para o céu todos em procissão, S.
Pedro leva as chaves, S. João leva o pendão, estão os tormentos armados, pés e
mãos de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a lança encostados, todo o sangue que
caiu naquele cálice consagrado neste mundo".
De repente e
sem contar, o obus veio e acertou mesmo no meio do largo. Um tremendíssimo
estrondo. Uma aflição de estarrecer. Os ouvidos zonzos, o cérebro em tremidos,
a respiração opressa.
O homem caiu
empurrado para trás e sentiu, vagamente e lá muito ao fundo, um estralhaçar de
vidros. Nem olhou para si nem para a mulher. Estupidamente pensou: "Agora
é que vão ser elas. Com o frio que está e sem vidros nas janelas, era só o que
faltava". Levantou-se tonto, sentindo a mulher meia taralhoca a repetir
uma oração:
"Treze raios tem o sol, treze raios tem a lua, rebenta p’raí
Diabo, qu’ esta alma não é tua."
E
repetia, e acrescentava, agora parece que desperta pelo susto, aquele oração de
afastar as trovoadas que lhe falhara há pouco:
"Santo António se levantou, seus sapatinhos calçou, Nosso Senhor
lhe perguntou: António aonde vais? Vou espalhar a trovoada. Espalha-a bem
espalhada, para onde não haja pão nem vinho, nem flor de rosmaninho, nem bafo
d' alma cristã. Já os galos cantam, já os anjos se levantam. Já Nosso Senhor
está na cruz, para sempre amen Jesus"
- Cala-te com
os galos ou vai prá a Jamba.
Ia a terminar com o seus filhos de quê, quando viu
um vulto que corria e se deitava na beira fumegante do buraco do obus.
Infiltrado inimigo? pensou. Lembrou depois o que o vizinho lhe garantira tempos
atrás que nunca caem dois obuses no mesmo buraco. Possivelmente, em ânsias de fugir à morte, vestira-se rapidamente
pusera a calça, a camisa e os sapatos e viera procurar abrigo no meio do largo,
deitado nos arredores do buraco onde o obus fumegava.
E a confusão,
a pouco e pouco terminou. Já só se ouvia um ou outro tiro longe, assim como
quem se despede até à próxima. De repente ele reparou que o vizinho coxeava. Do
cimo da janela, o homem lançou o insulto:
- Filhos da Puta, lixaram o
vizinho. Lixaram o camarada.
O camarada deve-se ter apercebido de que estava
ferido. Apanhado não sei onde por um estilhaço de não sei quê, coxeava
acentuadamente. O homem coxeava e cada vez mais. Não lhe doía nada, mas estava
ferido. Assim como quando já a vida deixou de doer às portas do outro mundo.
Deve ser da coluna, pensou ele. Agora que se pusera em pé, subia-lhe uma dor
imensa pela perna direita. Nascia nos dedos dos pés e subia... E aos gritos da
vítima acudiram todos os vizinhos. Havia até a lanterna do engenheiro que com a
falta de pilhas, era só a dele, e servia para as necessidades do largo.
Procuraram:
estilhaço está onde? E não havia pinga de sangue. Discutiam os sábios: às vezes
é só um furo. Tão pequenino que nem sangra. E o ferido, dos nervos, não parava
de xinguilar coxeando, doendo-lhe a perna direita como lhe doía. Pode dizer-se
que xinguilava a pé coxinho: “ Vou morrer. Vou morrer. Ai minha mulher que vou
morrer...”
E foi assim
que o milagre aconteceu:
…na pressa de
sair, decentemente vestido e calçado, conseguira o impossível: enfiar o pé
direito num sapato de salto alto da mulher e o esquerdo num sapato seu. Por
isso coxeava. E a verdade da guerra é esta: quem coxeia está ferido.
Austral
Nº31 Jan. a Mar. 2000
“ E Agora André”