Liberdade de Imprensa


Velha, de muitos anos, a escada do “Jornal” tremeu debaixo dos pés. O homem subiu lentamente, apoiando–se ao corrimão. Foi ao guiché ao cimo das escadas pedir as informações que já conhecia. Sem dizer ao que ia, seria impedido pela segurança: “Quer ir aonde?” Vou à publicidade. “Primeiro precisa tirar informações. Não é só andar assim à toa.” Mas eu estive aqui ontem. Sei bem onde é... À porta, outro segurança tinha–lhe perguntado como sempre: “Vai aonde, fazer o quê, anúncio é de quem, deixa bilhete de identidade...A menina da recepção – essa – apontou com displicência e desinteresse como se estivesse a fazer um favor:
- ...naquela porta.
Partiu para aquela porta. Bateu. Entrou  sem esperar licença (no dia anterior tinha estado ali, educadamente, batendo e rebatendo uma boa meia hora) até que a menina lhe gritou:
- Ó senhor, por amor de Deus – deixe de bater e entre.
Pois então, agora nem bateu – entrou. Não havia qualquer balcão que o separasse do funcionário. Entrava–se e ficava–se de frente para a secretária onde se sentava um jovem. Cadeira para visitas, clientes, ou coisa assim, não havia. Só papéis: montes e montanhas de jornais espalhados: estantes de jornais, chão de jornais, paredes encostadas a jornais e, no meio de tudo, numa sobra pequenina de espaço, o jovem, o funcionário, um rapazola de olhos mortiços e sonolentos. Feito de propósito para o lugar. Daqui a trinta anos estará ali, ligeiramente mais branco de cabelo, mas como nunca se tivesse levantado do lugar.

-Bom dia. Diga por favor...
Pousou o jornal em cima da secretária e disse:
- Ontem vim pôr um anúncio, mas não saiu.
- Não saiu como?
- Não saindo, pura e simplesmente.
Falou-lhe assim, em letras grossas e maiúsculas para demonstrar a sua indignação. O homem da secretária deu um pulo.
-Espere! como se se fizesse uma luz no túnel escuro e fechado das suas lembranças... Espere! O senhor é que veio cá pôr este anúncio...
E procurou no meio da papelada até encontrar – papel, fotografia e tudo...
Entregou com um sorriso bom de quem pede desculpa, mas não há nada a fazer. O cliente falou, ainda meio zangado:
- Sim senhor. Fui eu mesmo que vim pôr esse anúncio. Paguei, vocês receberam e não publicaram...
O funcionário, simpático e contemporizador:
- Veja: não publicámos, porque não podemos publicar. Quer dizer: não se podem publicar anúncios desse tipo.
- Essa agora! Não se podem publicar - admirou–se o homem. E ao abrigo de que Lei é que não se podem publicar?
O funcionário engasgou. De leis não entendia. Estava alí para obedecer à direcção e cobrar aos clientes: tantas linhas é tanto, meia página é xis, um quarto é assim ou assado...
- Lei? Não sei. Mas a gente vai devolver–lhe o dinheiro do anúncio. O Senhor compreende...
O senhor parece que não compreendia e começava a irritar–se. Estava verdadeiramente pelos cabelos. Isto, só mesmo em Angola é que acontece.
- Não. Não quero dinheiro nenhum. Quero é saber a lei que proíbe a publicação do meu anúncio.
E a voz elevava–se irritada. De baixo, o segurança espreitou, a ver como estavam os ânimos. As meninas da recepção bichanavam apreensões.
- Isto é... (e engasgou–se e mudou de discurso) numa altura em que em qualqur parte do mundo, os jornais aceitam até publicidade de prostitutas: “ Sou loira. Tenho dezoito anos e etc...” aqui em Angola recusa–se um anúncio. E porquê? Diga–me porquê... (e respondia) porque em Angola, qualquer idiota metido a director de um jornal se sente no direito de fabricar as suas próprias leis para atentar contra a livre expressão do cidadão.
E olhando de frente o funcionário:
- O senhor diga–me: eu venho aqui pôr um anúncio de que fulano faleceu. Posso ou não posso?
E o outro, atarantado e a medo:
- Pode, sim senhor.

E ele, vitorioso e incisivo:
      Preciso trazer o morto?
      Não senhor, não precisa.
-   Preciso trazer certidão de óbito?
-   Não senhor. Não precisa.
E ele calminho, como quem agarra um falsário na meia volta de uma mentira.
-Então diga-me: como é que você sabe, sem o morto, sem o atestado de óbito que o homem morreu mesmo?
E o rapaz confuso, idiota de todo:
     - Mas qual homem?
- O tal fulano que lhe vieram trazer o nome para dizer que morreu.
- Mas afinal, de qual pessoa que morreu está o senhor a falar?
- Falo de todos os nomes dos que morreram desde o princípio do mundo e vêm pôr aqui o seu nome no jornal a dizer que morreram.
- Mas o Senhor não veio pôr nome nenhum.
- Vim, sim senhor. Está aqui (e bateu com força nos papéis, quase que  os enfiando pelos olhos do outro) está aqui: Álvaro Manuel Duarte (que por acaso é o meu nome) comerciante (e há mais de quarenta anos. Já no tempo do colono eu era um senhor , comunica aos seus amigos, clientes e fornecedores que ainda não faleceu.
O funcionário respirou fundo: agora já percebia o engano e podia dar uma justificação.
- Parece que o problema é do local aonde o senhor mandou pôr o anúncio. O Senhor lembra-se que o mandou pôr na necrologia.
E o outro, mais sossegado. Afinal sempre recebera uma explicação. Era tudo uma questão de mal entendido e a conversar é que a gente se entende.
- Na necrologia, mas sem cruz.
     - Pois é: mas na necrologia não pode.
E o homem admirado:
- E não pode, porquê?
- Porque alí é lugar de pôr só os mortos.  
     - E eu já lhe disse: como é que você sabe que esses estão mortos, se não apresentaram  nem o cadáver, nem a certidão de óbito?
- Bem, calculo: se vêm aqui dizer que morreu, é porque morreu mesmo.
     - Se uns dizem que faleceram, eu estou no meu direito de dizer que não faleci. E qual é o melhor sítio para dizer que estou vivo, senão naquele aonde, onde todos os dias,  as pessoas vão ver o nome e as fotografias dos que faleceram? Vocês, por acaso, têm no vosso jornal uma secção para os vivos – uma viviologia?  O jornal é feito para os vivos ou para os mortos? Serão os mortos que compram o jornal e lhe pagam o ordenado? Qual é o caso desta discriminação? Ou é só assim: censura pidesca?

 Dario de Melo