A Mulher
“ Agora André”
Era
realmente uma mulher estranha. As vizinhas falavam. Ainda nova, o homem lhe
abandonara. Foi pra onde, ninguém mais lhe viu. Havia quem dissesse que estava
em Portugal. Isto tudo, e só seis meses que estavam casados. Não deu tempo para
lhe engravidar. Aconteceu quê, ou
não aconteceu quê? Nunca ninguém soube e ela também não disse.
Claro
que a gente já sabe: culpa é só mesmo da mulher que não lhe soube agarrar, ou
então, fez coisa que o marido nem pensou e fugiu logo...
Era
pessoa que não dava palavra que a gente conversasse, nem deixava que ninguém
lhe adivinhasse a vida.
Aconteceu
um dia que falaram que o marido tinha morrido lá nas terras do quê. Logo
apareceu a família dele (irmãs, tias, sobrinhas, primos) a reclamarem a
tradição das heranças, porque a casa é minha, a mobília de sala fica prá mana
caçula, eu fico com o rádio - era o sobrinho mais velho que falava - a
geleira eu é que levo.
Mas,
casa assim mais despida nunca se tinha visto. Será que ela escondeu tudo no
quarto? E a cunhada mais velha interrogava, assim como quem não quer a coisa:
- A
cama que dorme com você, está no quarto?
-
Televisão. Você não tinhas televisão, mana?
E, ralhando, para ela ver como
era culpada:
-
Você, minha cunhada, nem está a viuvar no quarto, nem te vestiste de luto.
Entretanto, o tom das perguntas
ia subindo, nesta sem-vergonhice da cobiça. Cada qual fazia o seu inventário e
se distribuía tudo o que pensava existir. A mulher, parecia não entender o que
eles falavam. Há gente que com o sofrimento fica assim: ouve, mas não
escuta. A cunhada resolveu acordar
a mulher com uma explicação:
- Na
nossa tradição é assim: quando uma pessoa morre a família do falecido é que
fica com as coisas. Mesmo esta casa, você tem que sair.
A mulher, parece, continuava a
não ouvir.
E
estava tudo nesta confusão quando entraram quatro matulões e começaram a
empurrar a gente para fora. Tinham-se juntado os vizinhos: admirados, estarrecidos, nunca
na vida tinham visto coisa assim. Ela levantara-se da cadeira e começara a
enxotar:
- Xé!
Xè! família do meu homem estou mesmo a lhes pôr na rua.
Resmungantes e ameaçantes foram
ainda mais depressa, quando viram que o sobrinho, o tal matulão que gritava “O
rádio é meu” lhe varreram uma lambada e ele ficou logo a cuspir sangue,
humilhação e areia. A mulher falava:
- Aqui
não tem tradição. Tudo o que aqui está é mesmo meu. Não foi esse vosso parente
preguiçoso que ganhou. Se ele morreu, se ele não morreu, a gente não sabe.
Vocês é que lhe estão a querer enterrar ainda vivo. Se ele aparece, vai dormir
na cama de quem, se vocês levaram?
Nunca ninguém tinha ouvido a
mulher falar tanto. Tudo calado, até o sobrinho batido.
-
Estou-vos
avisar família do meu marido, quem leva uma só coisa roubada da minha casa,
morre. E morre ainda hoje.
Aí ouviu-se um grito: um miúdo,
primo ou quê que tinha palmado uma gasosa começou com espasmos a rolar pelo
chão e a vomitar-se
todo.
- Vou
morrer, vou morrer -
Aiué! vou morrer...
O
coitado estava numa aflição doida. Dava pulos que parecia querer agarrar o céu.
A sua própria mãe, com medo deste feitiço, ou atarantamento do caso, não se
aproximava do miúdo Ela é que foi ter com ele. Agarrou-o disse-lhe com carinho:
-
Deixa só, meu sobrinho, você já não morre. Acabou tudo.
O
miúdo parou, ainda com os olhos apavorados e ficou bem. As pessoas se admiraram
e foi daí que uns começaram a dizer que ela era feiticeira, outros a procurá-la
porque tinha “mãos santas” de curar.
As
dificuldades da vida fizeram muita gente pedir ajuda nesta mulher estranha.
Nunca negava. Se era dinheiro, dava. Todos pagavam na hora, ou quando não
podiam davam satisfação. Medo de uma praga dela, era muito, embora ninguém
pudesse dizer que ela pragara este ou aquele. Se era parto, deixava tudo e ia.
As crianças nasciam, parece passarinhos a voar para as mão dela. Mão Santas de
Deus, que até mesmo os brancos, quando os doutores mesmo médicos já não sabiam
o que fazer, lhe iam buscar. Chegava, punha as mão na barrigona da outra e a
criança até parecia um avião a aterrar nas mãos dela. Se era doença trazia os
remédios: chá, paus e outras coisas que ela sabia. O que ela não sabia é quando
essa miúdas ainda de leite lhe vinham perguntar: se pode fazer isto, não faz
mal lhe deixar fazer aquilo... e ela andava meses com o coração gelado de
espanto: afinal?! se fazia isto e aquilo e até mais?!... Ela que não se
entendia muito bem com essas coisas da cama,
porque uma cama serve para o que
serve de fazer filhos, sabia agora que, até fora da cama...
Atrás
da sua banca de vender: cerveja, gasosa, coca-cola, e assim - a
senhora estava na sua mudez. A olhar tudo, a ver tudo, a dar conta de tudo, mas
parecendo que não reparava em nada. Nunca se perguntara: porque é que ele foi,
porque é que ele não foi. Quem o fez ir, foi o destino. Lembrava-o às
vezes e via-o
tal como era, bonito,um corpo elegante, milímetro por milímetro sonhado e
revivido. Não com a gula de quem quer ter homem. Gostava de olhar o que era
seu. Não precisava tocar.
Espreitava-o
quando ele, suando as suas bandidagens, se levantava com o sol e vinha cá fora
apanhar o ar fresco da manhã, com uma caneca grande de alumínio. Tomava o seu
chá, gole aqui, gole acolá, enquanto o sol subia e a brisa se aquecia no
fogareiro do dia. Quando não tinha trabalho (ele gostava mesmo era da sua
preguiça) sentava-se
num banco-gentio
a canivetar madeira. Fazia coisas que se fosse hoje, com esses estrangeiros
todos, ganhava uma fortuna no artesanato.
De
viver era assim entre os dois: mal
falavam. Até no tempo do namoro: praticamente não diziam palavra -
davam-se
as mãos e ficavam horas e horas a verem-se. A diferença entre ver
e olhar é esta: quem vê quer conhecer-se, quer saber-se,
quem olha quer tão somente reparar. Depois de casados o mesmo: amanheciam
calados com um bom-dia
de educação pela manhã, e adormeciam monossilábicos, com um boa noite sem mais
palavras.
Família,
a que existia, eram os vizinhos - porque vizinho que desprezas na sorte, é um irmão que
te falta na desgraça. Nestes tempos, a família não é como antigamente - come-te em
vida e empurra a morte a te fechar o olhos. Os vizinhos, não. Sabem que quando
você morre, a ajuda acaba.
Se
um dia ele viesse havia de lhe dizer coisas amargas da vergonha, da humilhação
de mulher que o coração escondia por debaixo daquela máscara muda da sua cara.
Ao menos lhe engravidasse. Andou a fazer o quê em cima dela vezes e vezes que
parecia que só tinham casado para essa coisa...
Se
um dia ele voltasse, até nem diria nada. Desabituada de falar custava-lhe
tanto dizer o quê, pensar no quê. Falar, melhora o destino? Falar, muda a tua vida?
Falar, faz o quê, alem das confusões que faz?
Se
um dia ele chegasse...
E
um dia ele chegou. Vinte anos depois. Reconheceu-lhe a voz -
descansada, profunda, voz grossa, mesmo de homem-HOMEM. Primeiro viu quem
era pela voz, só depois de estar certa, retirara os olhos que mantinha baixos
na quitanda que arrumava.
- Boa
tarde -
cumprimentou ele, como se a tivesse visto no dia atrasado -
posso ficar, mesmo só aí no seu quintal? Amanhã, ou depois, arranjo sítio.
Vinha
a falar um português afinado. Um português importante, de branco fino.
Respondeu-lhe,
naturalmente, como se ele nunca tivesse saído dali:
- Pode
entrar. O quarto, você já sabe.
-
Obrigado.
Na noite que se dormiram pela
primeira vez depois de tanto tempo, ele ainda ensaiou uma aproximação tímida.
Uma aproximação de dever. Mas o fogo já não morava ali. E ela disse:
-
Amanhã, você vai dormir no outro quarto. O nosso tempo passou. Vamos ficar
mesmo só assim.
E, cada qual no seu quarto,
recomeçaram a vida. Ela, na quitanda vendendo coisas, e sabendo como lhe
criticavam de meter um homem em casa...
-
‘tava com tanta falta assim que recebeu o homem que lhe abandonou faz vinte
anos? Quando a gente falou: “ amiga com este, amiga com aquele, não é bom uma
mulher ficar só assim sozinha, sem filho que lhe dê uma velhice, você disse
não. Meu homem de Igreja, só tenho um. Agora - está aí agora - que
já lhe passou o tempo de ter filhos é que você precisa de homem pra quê?”
Ele, por ali uns dias, à espera
de emprego que nunca chegava, de canivete nas mãos, moldava figurinhas de
madeira. Como antes, a brisa da manhã, se aquecia no fogareiro do Sol.
Dario de Melo
FIM - 31.12.2001