O Arquitecto do Inferno
“ E Agora André”
Sempre se
considerara uma boa pessoa. Se é
certo que a gente não se deve gabar que sou isto, que sou aquilo, não há
ninguém que não pense o que é, ou como julga ser. Era trabalhador. Era caridoso. Era sensível. Era também crente,
não muito praticante, mas que não enjeitava a religião que tinha.
Quando a Independência chegou e antes dela a
paixão dos Movimentos, ele seria dos únicos angolanos que não pendia nem para
este, nem para aquele. Diziam-lhe:" Um homem não se pode alienar da vida
do seu país". Respondia:" Precisamente por isso é que eu trabalho. Os outros que
escolham, eu só sei trabalhar ".
Talvez por
isso, se era Chefe de Departamento no tempo colonial, Chefe de Departamento
ficara até os dias de hoje. Só com uma diferença: tiraram-no de um Departamento
importante e inventara-lhe um outro de Arquivo e História que ninguém sabia
muito em o que era num ministério como o seu. Isto, enquanto ele não começou a
espanejar aqueles papéis velhos. A dar valor ao lixo, como os outros diziam.
Fez exposições que o Ministro inaugurou, o próprio Presidente apreciou, enfim
um êxito de respeito no dia próprio do Partido.
Com o andar do
tempo começaram-se a esquecer de que ele era um angolano um tanto especial,
mormente sem ambições políticas e começaram-no a utilizar - digamos assim -
como conselheiro. Alturas houve em que ele foi o verdadeiro Director Nacional,
igualmente o Vice-Ministro e por aí. Como era
discreto, confiavam-lhe os dossier, ele fazia o despacho naqueles papéis
amarelo-colantes e o director tinha só que copiar com a sua letra e assinar por
baixo.
Durante anos
viu descer e subir muita gente: contínuos passaram a chefes de, escreventes a
directores, vice-ministros ou
comissários. Ele trabalhava. Não achava nem bem nem mal. Se a Lei permitia,
quem era ele para dar opinião sobre os casos? Tinha a condescendência de pensar
que as pessoas não são só defeitos e analfabetismos. Têm outras virtudes e
saberes. Olha os sobas: quantos deles (para não dizer todos) criativos,
conhecedores e criteriosos nos deveres da sua governação...
Um dia acordou
e sentiu que aos quarenta e cinco anos estava a atrasar-se no casamento.
Chegara o dia em que deveria responder à pergunta: ou caso agora, ou decido-me
a ficar solteiro toda a vida.
Como estas
decisões precisam sempre de duas pessoas para serem tomadas, começou a reparar
com uma outra atenção no mulherio que tinha no serviço, as que todos os dias encontrava na rua
quando ia para casa e uma ou outra
vez, quando era obrigado a ir a
uma festa - casamento, baptizado, ou quê... (é dizer que nunca lhe tinham distribuído carro, facto que era sempre justificado por
não ter carta.)
Foi aí nos quê
que a coisa começou. Explico: primeiro ele não procurava uma mulher bonita,
tipo boazona. Desejava, isso sim, uma jovem já chegada aos trinta, serena, já
fora da idade das grandes paixões, dos príncipes encantados, que viesse para
ele assim como quem é família. Segundo: os quês de que eu falo são as festas
que não são festas, mas podem durar dois e três dias de comes e bebes. São os
óbitos.
A gente está a velar o morto e lá pelas tantas vem de
mansinho um café, bolos secos, uma ginguba torrada e, mais adiante, em
apertando o calor da noite (e o fresco ao despertar da manhã) para que ninguém
adormeça vão quatro ou cinco cervejas, ainda assim, respeitosas e
envergonhadas.
Depois é o
acompanhamento: carros, boleias e camionetas de carga. A família à frente no
carro funerário (a viúva ficou na cama a viuvar o marido e dali não se levanta
antes de sete dias) leva-se então o corpo a cemitério. Um Kota de respeito
comanda quem empurra a carreta:
" E agora os parentes chegados: irmãos, filhos, sobrinhos e primos
"... " Chamamos os amigos e colegas do falecido"... "Agora
os vizinhos"... isto tudo até à cova, onde uns tipos sujos e patibulares
apagam as beatas à aproximação do cortejo.
Tudo pára. O
sol aquenta-se na poeira. Abre-se o
caixão e são as últimas despedidas. Estende-se no rosto do ente querido um
lenço branco para que a terra lhe não suje a cara. Fecha-se
a tampa. O dono
do óbito dá a sua ordem. O coveiro mais velho aproxima-se e com a picareta de
lado dá duas, três pancadas na tampa do caixão até partir. A família suspira:
nenhum ladrão desenterrará o caixão para vender no outro morto, incomodando o
repouso eterno desse aí.
O
acompanhamento dispersa-se no regresso e todos no seu carro, ou na sua boleia
vão-se reagrupar na casa do óbito. Entram, não sem antes lavar as mãos. À entrada
da porta está a bacia, a toalha e o sabonete que ninguém usa. Conversa aqui,
cigarro além, à espera da canjica, do peixe frito, do mufete, do muzongué, das
respectivas cervejas ou vinho. Às vezes, a família do falecido, come à parte a
comida de que ele gostava. É como que uma última homenagem. Assim se vive!
Assim se morre! Assim mesmo, também se come.
Foi aí, num
óbito desconhecido a que fora empurrado por um colega (amigos, não era por
assim dizer, que tivesse):" Vem lá comigo. Estas coisas chateiam-me ir
sozinho"... Mas eu não conheço o falecido..." Isso tem importância,
tem? "... lá foi, empurrado por aquela sua fraqueza de não saber dizer que
não.
Chegou.
Sentou-se. Deixou-se ficar pelo quintal que era amplo e arejado. Sítio
preparado para grandes farras. A churrasqueira. Uma cozinha só para as ocasiões
e mesas como num restaurante. Distraído olhou para aquele "bar" de
família decorado com gosto. Depois olhou com atenção para a casa - um palácio!
Ia apanhando uma ou outra palavra que os grupos diziam entre si - muitas e
várias conversas sobre o falecido, que por acaso, como todos os falecido, era
muito boa pessoa: um tipo sensacional que deixava três viúvas e oito filhos,
quando de repente...
...quente,
avassaladora, uma onda que lhe queimava o baixo ventre (ali onde homem é mais homem) e subia e se
entranhava no vazio do estômago e lhe sufocava o coração e se transformava numa
vaga de ódio, numa tempestade de inveja: "Como é que este gajo tem uma
casa assim que eu nunca terei? Quem foi o pobre do colono que andou uma vida
inteira a construir isto para este gajo ficar com ela? ". E pôs-se a ralhar com o morto,
numa alegria imensa de o saber ali, estendido, vulnerável, mudo que nem uma
pedra burra.
" Então,
meu cabrãozinho, roubaste o que era dos outros e onde está agora o que é que é teu? Julgavas que eras eterno? Já
imaginaste, mais daqui a bocado, a tua santa família à porrada uns com os
outros: porque se eu sou filho, a minha mãe também é mulher e o meu avô é
sogro... E quantos gajos já estão prontos para saltar em cima da herança das
tuas mulheres? "
Estava tão
entretida nesta conversa de insultos e gozações quando chegou o amigo que
cumprida a obrigação dos pêsames se queria ir embora:
- Vamos?
Foi. Foram.
Ele, o colega, e o espanto que ainda lhe roía por dentro.
Não dormiu durante toda a noite. Queria
encontrar uma justificação para aquela súbito, violento e autêntico ódio por
quem não conhecia. "Eu não posso ser tão sacana assim! ... Eu posso-me
considerar uma boa pessoa!... Eu sempre fui um gajo de sentimentos, de
educação, de saber estar como se deve... "
Pelo sim, pelo
não, começou a experimentar as suas reacções aos óbitos. Não faltava a nenhum.
E a história era assim: em casa de pobre comportava-se normal; em óbito de rico
insultava o morto, ria-se do falecido e, principalmente: sentia uma alegria
enorme de o saber na posição dos que não se tornam a pôr de pé.
Começou a
andar preocupado, porque isto não é normal num homem comum, quanto mais num
Católico Apostólico Romano, que se nem sempre ia à missa se não esquecia de
comungar pela Páscoa da Ressurreição.
Procurou um
padre que lhe pareceu que pudesse ouvir com o tempo e a atenção que o caso
requeria. Este sossegou-o: "Reze. Reconcilie-se com as injustiças do
Mundo: o Senhor disse: pobres tê-los-eis até ao fim dos séculos. Não queira ser
juiz dos seus irmãos. Só o Senhor é Juiz. Há pobres e ricos. Há ladrões e gente
honesta. Já reparou que até haverá pessoas que nunca roubaram por falta de
iniciativa, ou por medo de arriscar?... que, quase se pode dizer que não roubar
será também um pecado de omissão de onde talvez derive a inveja dos que não têm
nem procuraram ter?
O padre
estivera a falar dele, ou só a sondar a possibilidade de ele ser também um
desses ladrões que não roubam por medo, que não se arriscam na política por
receio de perder o quase nada que têm e o sossego que apreciam. O sossego e
esse vício espantosamente virtuoso que é trabalhar, trabalhar, trabalhar.
Levantar-se de manhã, partido, rebentado e sentir uma satisfação enorme de se
confessar: "Ontem trabalhei que nem uma besta! " Tudo isto como se
fora rei, campeão, figura ímpar no mundo inteiro.
Incomodava-se
agora as noite. Toda a gente se
adormece com truques: uns viram-se para a esquerda, outros lêem até deixar cair
o livro, estes pensam na vida porque não tiveram tempo de o fazer durante o
dia, aqueloutros examinam o que têm a fazer no dia seguinte, ele... modernizava
o inferno.
Isto é assim:
como sabeis, já ninguém acredita em diabos vestido de vermelho, com rabo que
não serve para nada e cornos que nunca utilizam. Mais fácil do que marrar é dar
uma espetadela com o garfo com que andam sempre pintados. Sendo assim e não se
compadecendo esta imagem antiga com os tempos modernos, são os diabos nos dias
de hoje executivos simpáticos e eficientes, mulheres lindas e insinuantes,
porque só assim, nesta pressa em que vamos, é possível achar que vale a pena
cair em tentação.
Depois, como
em todo o lado, há o problema do espaço: com tantas almas infernizadas desde o
princípio do Mundo (Neros, Calígulas, Messalinas e que mais) há necessidade de
compactar as almas de modo a ter
um sofrimento mais ecológico e ocuparem menos espaço. Assim (inventou ele há
duas noites e todas as noites aperfeiçoa, puxa pela imaginação, modifica e
adormece) as almas saem do aparelho de compactação onde são reduzidas ao
tamanho de hambúrgueres, mas sem perder nada da sua individualidade e seguem
para as frigideiras eléctricas e são arrumadas em gavetas de silêncio. Não se
comunicam. Não se conhecem. Pensam-se sozinhas e únicas. O verdadeiro tormento
é a solidão e quando alguma delas intenta resignar-se, e achar que mais vale
dormir e esquecer, a gaveta abre-se e ela entra em combustão automática até
reatingir os níveis de desassossego e desespero convenientes.
Isto sonhava
ele todos as noites. Aliás agora, começara durante o dia a retocar o inferno
que modernizara.
Encontrava
porém a lucidez suficiente para se perguntar: "Afinal, estarei doido? Uma
pessoa normal não se compraz com uma coisa destas - brincar aos inferninhos.
Mais: instituir-se em arquitecto do inferno, compulsivamente e sem
arrependimento, é atentar contra o Poder de Deus.
Rezava.
Voltava ao padre, recebia conselhos e não obtinha resposta. Até que um dia, na
aflição de um vizinho, foi ao hospital onde o filho deste agonizava. Foi, entre
seco e empurrado, para lhe dar conforto. Foi para o ajudar mas teve receio: o
vizinho era estupidamente rico. Teve medo de disparatar e afligir o menino. Num
acesso de maior choro o vizinho saiu para o corredor. E ele a querer
distrair-se daquela obsessão começou a pintar o céu para o menino ouvir:
"São anjos e Deus, olha só como tudo canta... "
O menino abriu
os olhos e chamou por ele como se fosse o pai. Deixara de ver. Já ia a caminho.
- Papá. Paizinho.
Apertou-lhe a
mãozinha já sem força e sentiu que poderia, mas não era suficientemente homem
para pedir um milagre. Vivera e nunca se interessara por amar: permitiu que o
menino morresse. Seco e frio, perdera a capacidade de chorar. Sentiu que
deixara de ser humano.
Saiu para a
rua. Tal como o menino, olhou e não viu. Ouviu sim: a buzina do camião. Já não
sentiu a travagem nem o impacto - via agora Deus e os Anjos
que descrevera ao menino. Cantavam. O menino sorria e estava lá. Estendia-lhe as mãos e chamava:
- Papá. Paizinho